21 de fevereiro de 2005
Todos Iguais
Era uma vez uma menina branca, cresce entre primos e um meio-irmão, rodeada de afectos, mimada ao máximo, apaparicada por todos e super-protegida, sendo única filha, única neta, única prima, única mulher e a mais nova. Nunca lhe disseram que são diferentes e ela nunca reparou. Passou os primeiros anos angustiada com a grande diferença, a única que lhe parecia importante, a injustiça de não poder fazer xixi de pé como eles. Só com o passar dos anos se apercebeu, pelos olhares e indiscrições de outros que os meninos eram diferentes, chamavam-lhes mulatos, pretos, mas ela nunca reparou.
Entrou para o ciclo, toda aquela quantidade de professores e disciplinas entusiasmavam-na, falava frequentemente deles em casa, contava como eram, se gostava deles, como corriam as aulas, e tudo o que se pudesse lembrar. Chega o dia da reunião de pais. No final, a mãe, surpresa pergunta: “Nunca me tinhas dito que o teu professor de Educação Visual era preto?!” Ela olha a mãe com um ar confuso, sem perceber a pergunta. A mãe cala-se, apercebe-se imediatamente da gafe e muda rapidamente de assunto. Sorri, sorri muito por dentro, tinha conseguido o que poucos conseguem, estava orgulhosa do seu trabalho na educação da filha. Viria a contar esta história vezes sem conta mais tarde, babando de orgulho.
A menina entra na faculdade, conhece Nuno, o melhor aluno, dotado de grandes capacidades, não só académicas como artísticas. No terceiro ano era já assistente. Tinha o conservatório de piano e dava concertos, chegaram a ir vê-lo algumas vezes. Passou à cadeira mais difícil à custa dos seus apontamentos, tal como muitos outros. Admiravam-no e eram-lhe gratos pela disponibilidade com que ajudava os mais fracos. Só anos mais tarde, numa discussão acesa com um mentecapto, que reclamava para os brancos o monopólio da inteligência, se lembrou do Nuno e reparou que era preto. Nunca ninguém o tinha visto de forma diferente, ao contrário do que se costuma apregoar.
A menina existe, é real, cresceu e tem muitos amigos, que não distingue por cores, feitios, opções sexuais ou estrato social. Ou tenta não o fazer.
É verdade que a sociedade não está ainda livre de preconceitos e temos ainda um longo caminho a percorrer, mas isso só irá acontecer quando as crianças deixarem de reparar nas diferentes cores de pele, mais do que reparam nas cores de olhos ou tipos de cabelo, se são baixos, altos, gordos ou magros. Isso é conseguido se nunca lhes mostrarmos essas diferenças. É só mais uma característica física igual às outras e não é limitativa, ao contrário daquela que ainda hoje a incomoda: as meninas continuarão a não poder fazer xixi de pé.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Belo momento... Efetivamente, não existe fundamento no "todos diferentes" pois que, embora se refira a diferenças de outro nível, o objectivo anti-racista mascara o real significad, e a frase perde efeito.
ResponderEliminarMais uma vez, foi MESMO um belo momento.
Tentei não ser parcial nem cair num sentimentalismo artificial- sabes perfeitamente quem são as personagens da história... Escrevi este texto após ler um outro muito carregado de ódio, que apesar de ter muito de verdade me incomodou. Só porque acredito que o mundo está a mesmo mudar, e que existe gente que, efectivamente, já foi educada sem preconceitos. Bjinhos
ResponderEliminarBelo texto...
ResponderEliminarJá muito disse sobre o tema que abordas e de várias formas.
Neste momento lembro-me de uma situação numa discoteca há anos atrás, em que um amigo preconceituoso reparara num grupo de pretos. Recordo-me de ter dito:
"Carlos, eles não são pretos, tu é que os vês como pretos."
Lembro-me de em pequena me fazer confusão chamarem-lhes pretos... O meu priminho adorável tinha-me ensinado muito bem as cores (com um método didáctico infalível: cada vez que errava apanhava), e eu tinha a certeza que aquele tom era castanho...
ResponderEliminar"Luna", não há mal nenhum que os chamemos de pretos, o problema está na conotação negativa que atribuíram ao preto (s).
ResponderEliminarAqui há tempos, num artigo de opinião para um jornal, criticava o título de uma marcha em prol da pedofilia, a então "Marcha Branca", perguntando o que é que uma marcha em prol das vítimas da pedofilia (em prol da paz, etc.) era revestida por símbolos brancos (pombas, bandeiras, etc.)
Penso que o problema da falta de paz reside, em parte, nisso mesmo: na falta de pluralidade – o símbolo que apela à paz deve ser revestido de todas as cores, e por aí fora...
O texto em questão "Marcha Branca" encontra-se algures dentro do meu blogue.
Lá está... mas quando felizmente a criança ainda não percebe a conotação negativa, a expressão torna-se ilógica. Com tempo procurareio texto em questão.
ResponderEliminar