27 de outubro de 2009

Mas afinal em que é que ficamos?

"Uma das mais importantes lições que retirei do estudo da história das religiões e da mitologia é que as narrativas mitológicas são - na sua maior parte - poesia e não prosa. A história de Adão e Eva é poesia. Ou será que haverá alguém que acredite que Eva foi feita de uma costela de Adão? O autor desta narrativa do Antigo Testamento está a recorrer a uma linguagem simbólica - tal como poetas muito posteriores, como Shakespeare ou Camões, recorreram à linguagem simbólica para criarem as suas obras-primas. Ou será que algum leitor de Os Lusíadas pensa que os navegadores portugueses depararam com um temível gigante chamado Adamastor nas suas viagens da época das Descobertas? Ou, quando a narrativa bíblica conta que Moisés separou as águas do Mar Vermelho no Livro do Êxodo para que o seu povo pudesse fugir do Egipto, será que alguém com mais de dez anos acredita que ele possa ter murmurado algum abracadabra hebraico e produzido tal milagre? Espero bem que não. O Antigo Testamento pode ter como referência um acontecimento histórico - a libertação do povo hebraico -, mas a linguagem utilizada é poética e simbólica. Por assim ser, está aberto a diferentes interpretações. Pode acontecer que o que aqui se pretende é falar da viagem espiritual que cada um de nós pode fazer ao longo das nossas vidas, da escravidão para a liberdade. Nesse caso, a história de Moisés será sobre a nossa aspiração - como indivíduos e como povo - à segurança, a uma vida realizada e com sentido."

um óptimo texto de Richard Zimler sobre a polémica Saramago


Desde que esta polémica começou que não oiço outra coisa que dizer que é simbólico, simbólico, simbólico, que não se pode interpretar literalmente nem acreditar em tudo porque é simbólico, simbólico, simbólico, de tal modo que ainda não percebi se no meio de tanto simbolismo é suposto então haver alguma coisa ser verdade, e que fundamente a denominação de livro sagrado e constitua alguma prova da existência de Deus. Ou bem que se exclui a literalidade do divino e se assume que aquilo é criação humana, ficção, simbolismo, poesia, romance, uma representação do homem no seu melhor e pior, um retrato social e reflexo dos tempos em que foi escrito, reduzindo-se à condição terrena, ou bem que se acredita nalguma coisa sobrenatural que lá está escrita, não?

(E como se faz a distinção? Tipo checklist: bom, vejamos, Adão e a Eva, não, Moisés e a separação das águas, não, Moisés na montanha, sim, pragas no Egipto, sim, Arca de Noé, não, Sodoma e Gomorra, não, Onan, sim, Job, não, Abrãao e o sacrifício de Isaac, não, travessia do deserto, sim, povo escolhido, sim, terra prometida, sim, David e Golias, não, e por aí adiante.)

10 comentários:

  1. Penso que Zimler (não li todo o texto, só o excerto que partilhas) não leva em conta a diferença abismal das mitologias politeístas grega, romana e nórdica onde a poesia teve lugar de destaque pois servia para elevar a voz do homem aos deuses, dos escritos bíblicos tidos como narrativas em segunda pessoa dos feitos divinos, ou do Corão supostamente ditado por Alá. Na mitologia grega e romana (principalmente na primeira) os deuses eram distintos dos homens pela sua imortalidade já que lhes eram reconhecidos erros e sentimentos como arrependimento. Na mitologia nórdica, os deuses partilhavam entre si a certeza (fatalidade) da mortalidade que chegaria um dia.

    Mas a conversa sobre simbolismos não faz grande sentido já que os textos sagrados são interpretados de forma mais ou menos literal conforme o indivíduo ou seita ou estrutura religiosa. O que existe é uma crescente racionalização da bíblia para acompanhar a crescente materialização do pensamento médio (daí a importância da ciência) com focos de resistência (criacionistas, por exemplo). Digo eu.

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  2. É para isso que servem os historiadores. Para separar os factos do simbólico. Ou das lendas, se preferirem.

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  3. Para quê artilharia pesada se bom senso bastará?

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  4. E depois no fim sobra o quê? Há o histórico e o simbólico, onde fica o divino?

    Afinal aquilo é a base de pelo menos duas religiões, em que se assume que se acredita em Deus.

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  5. E secalhar foi deus que lhes disse como deviam interpretar a bíblia, não? Já que é tudo simbólico e susceptível a várias interpretações... A religião está tão cheínha de contradições, admira-me como apenas tão poucos se questionem acerca disso. E depois o Saramago é q é burro!
    kiss

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  6. Os livros sagrados são manifestações de fé (consequência). A crença/fé é anterior à escrita. Acho que o divino está a montante.

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  7. Mas supostamente essa fé vem de provas da existência do divino, de manifestações de deus aos homens, feitos sobrenaturais, relatadas nesses livros, certo?

    E saltando para o novo testamento: se se perder a dimensão sobrenatural e deixar apenas a humana, donde se pode concluir que cristo é filho directo de deus, e não apenas um homem? É que está aí toda a base da fé cristâ, por exemplo.

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  8. A fé aparece como escapatória para fenómenos naturais que escapavam à compreensão dos homens ao longo do tempo (daqui se percebe como a fé tem um carácter evolutivo prevenindo o indivíduo de gastar demasiados recursos na explicação e mais na sobrevivência; só o excesso nutricional permitiu a racionalização). Daí até às crenças de hoje foi apenas um escalamento.

    Luna, tentas explicar a fé a partir dos escritos quando estes são explicados pela fé.

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  9. o que levanta uma outra questão: resolvida a questão nutricional e supridas outras carências o homem continuará a precisar de acreditar em algo superior a si?

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  10. "E saltando para o novo testamento: se se perder a dimensão sobrenatural e deixar apenas a humana, donde se pode concluir que cristo é filho directo de deus, e não apenas um homem? É que está aí toda a base da fé cristâ, por exemplo"
    "filhos" de Deus somos todos. Para mim, que acredito em Deus, Jesus era um filho de Deus, como todos nós, uma humano mas que transmitia a sua mensagem de amor e bondade de uma forma sublime.
    Sou cristã, acredito em Cristo. Sou católica, o que não significa que não tenha a minha interpretação, os meus pensamentos, os meus questionamentos e que não aceite outras teorias. Por exemplo, acho que a história de Cristo faria muito sentido e não perderia a beleza nem a divindade se tivesse ocorrido como se explica no codigo da vinci. E conheço gente muito ligada à igreja que aprendeu em formação religiosa, precisamente a questionar muitas coisas que vêem na Bílblia...
    Religião, fé, é mesmo algo que não se explica e que não vale a pena discutir.

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