20 de outubro de 2009

Matar um filho e outras coisas simpáticas

"O teste de Deus a Abraão (o sacrifício de Isaac) foi um bluff. Mais difícil de compreender é a história de Job. Job perde a fortuna, os seus filhos morrem, os seus amigos abandonam-no, ele sofre, questiona-se mas mantém a sua fé e no fim é recompensado. A recompensa foi a restauração da sua riqueza. Deus duplica o número de ovelhas, camelos, juntas de bois e jumentos que este homem bom possuía antes do início da sua provação. E como corrige Deus o sacrifício dos filhos de Job? Exactamente da mesma forma, isto é, com novos nascimentos, ainda que, na prole, não seja certo que Job tenha também conseguido o notável lucro de 100% que experimentou na agro-pecuária. O elemento perturbador é este: para nos mostrar que somos parte do Seu rebanho, Deus fez dos filhos de Job meros animais - ovelhas, camelos, juntas de bois ou jumentos. Mas talvez a diferença entre estas duas histórias seja apenas de grau. A fé de Abraão salvou-o do remorso de se saber capaz de matar um flho, como salvou Job da lembrança cruel do desaparecimento da sua primeira família. Esta recompensa tem um preço, que é a anulação do indivíduo. Abraão e Job exemplificam o trade-off do fanatismo. Dito isto, acrescento que não ganho nenhuma percentagem sobre preço de capa do último livro de José Saramago e que classifico como suspeita qualquer trajectória intelectual que desemboque numa apaixonada apologia ou crítica das Escrituras."

no Ouriquense, o melhor blogue de 2009

2 comentários:

  1. Primocas:

    Positivo, negativo, neutro...
    Para quando a aprendizagem geral de que existe neutro, nem bom nem mau, que somos apenas mais uma espécie, que as religiões são criações culturais da Humanidade (podendo, quando muito, versarem de forma redutora e distorcida, as memórias de hipotéticas - mas até hoje não comprovadas - civilizações pré-neolíticas) e que convém não estragarmos o veículo antes de arranjarmos outro (seja esse outro a Lua, Marte, Vénus ou os satélites de Júpiter ou de Saturno).

    Beijinhos chuvosos

    ResponderEliminar
  2. Adorei o texto. Um dia quero escrever assim.
    Até porque na catequese aos 8 anos lembro-me de dizer que achava a história de Abrãao e de Isaac "má". A minha catequista não me soube responder porque Deus tinha tido aquela ideia.

    Mas hoje, continuo a não conseguir verbalizar assim tão bem a minha admiração vs indignação.

    Uns nascem com dom outros não =)

    ResponderEliminar