18 de maio de 2012

Os holandeses

Costumo dizer que os holandeses são o povo que nunca se desvia. Isto tem um significado simultaneamente simbólico e literal. São um povo incapaz de se desviar de uma regra ou de se adaptar, conforme a situação, mantendo-se teimosamente firmes na sua posição, mesmo que tudo indique que a devam mudar, mesmo fisicamente.
Por exemplo, no outro dia, depois de ter caído, e enquanto me dirigia a um médico de serviço a contorcer-me de dores, de repente a ciclovia de dois sentidos em que seguia tornou-se sentido único sem que me tivesse apercebido, e dou comigo a ir em contra-mão sem querer. Dado que era separada da estrada, precisava de andar mais uns metros até poder atravessar para o outro lado. Com espaço suficiente para duas bicicletas passarem, pensei que conseguiria rapidamente chegar à zona de travessia sem problemas, até que uma velhota resolveu ultrapassar, ficando de frente para mim. Ora, com uns 30 metros de separação ainda, pensei que desistisse da ultrapassagem vendo-me ali sem ter para onde ir, mas não, continuou, comigo parada, até chocar na minha roda da frente. E nessa altura começou a barafustar, provavelmente a desejar-me cancros e sífilis e a peste negra, que é como os holandeses insultam, como se, surpresa, não me tivesse visto e eu tivesse aterrado ali de repente, ou esperasse que, sei lá, como eu estava em contra-mão e não devia estar, me tivesse atirado para o canteiro ajardinado ao meu lado para que passasse. Naquela cabeça, regras são regras, e eu não devia estar ali, pelo que devia continuar nem que me passasse por cima, em vez de pensar que talvez fosse boa ideia esperar mais 30 segundos antes de ultrapassar, deixando-me passar e chegar à zona de travessia.
Da mesma forma, todos os dias deparo com uma situação peculiar. No caminho de casa para o trabalho, logo à saída da minha rua, tenho um cruzamento lixado, pelo que geralmente prefiro atravessar numa zona com melhor visibilidade numa passadeira. Regra geral, em ciclovias que atravessam estradas, os ciclistas têm prioridade, tal como têm os peões nas passadeiras, e os carros param mesmo. No entanto, se quando vou a pé todos os carros param, pelo contrário, estando de bicicleta, os carros não param para eu atravessar. E esta é a parte cómica: isto acontece se estiver parada com uma perna para cada lado do quadro, porque aí sou ciclista, mas no entanto já param se eu tiver as duas pernas para o mesmo lado, porque aí já sou uma peã a levar a bicicleta pela mão. E são pequenas coisas como estas que tão bem retratam este povo, mostrando que a tão afamada tolerância não passa mesmo de um mito.

30 comentários:

  1. Quando fui a Amesterdão nao tinha lugar no avião de regresso, algo como overbooking. E sempre que falava, argumentava com alguma coisa a resposta deles era regras. E agora achei um piadão à tua história

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  2. Agora a sério, esta cena da passadeira é mesmo um fenómeno que já testei. Já me aconteceu estar parada de perna de cada lado e ninguem parar, e pararem assim que pus a perna do outro lado.

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  3. Luna, quanto à passadeira é como em Portugal. Vais a pé com a bicicleta pela mão têm de parar. A partir do momento em que te pões em cima dela deixas de ter prioridade.
    Agora a da velhota, cá para mim foi maldade ou então era pitosga e realmente não se apercebeu que ias de frente para ela! lolol

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  4. Mas em portugal os ciclistas não têm prioridade nunca, aqui sim, quase sempre.

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  5. A bicicleta na Holanda dá jeito... quando chegamos às tantas da noite e vai-nos servindo de apoio.
    Fora isso, nem me arrisco.

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  6. São altamente tolerantes com aquilo que já está regulamentado lolololol. Por um lado, gosto dessa maneira de ser porque Portugal e Espanha me parecem o oposto, mas um oposto até à exaustão. O que me provoca uma irritação profunda porque gosto de regras e ordem. Por outro lado, gosto de gente que sabe contornar as regras para proveito da comunidade, ou seja, aquilo a que se chama jogo de cintura ou mano izquierda.

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  7. Nem mais. Quando vêm com a conversa que ah e tal os holandeses são um povo muito tolerante também torço sempre o nariz.

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  8. Aquilo que descreves para mim parece-me o céu.

    Vivi na Itália, vivi no Brasil,agora salto entre Suiça/Portugal/Angola.
    O que me dá nos nervos é o saber que posso resolver com o sorriso e com o "jeitinho"...ou não. O voltar no dia seguinte e falar com outro funcinário ou o consentir na gasosa.

    Regras são regras e regras são para todos parece-me tranquilo e sereno.

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  9. Depende da forma como são interpretadas e vividas essas regras. Aqui por vezes é de mais.

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  10. Quando aí vivi, uma das primeiras máximas que me ensinaram foi "se não tiveres cotovelos na Holanda, estás feita" ou seja, aquela gente nunca obedece ao "com licença". É escusado. Não se arredam. Também não sabem que nos transportes públicos, só se pode colocar uma mochila ou mala no banco ao lado se houver muitas cadeiras livres...se não exigíssemos, não as retiravam nem para um idoso se sentar. Os motoristas dos autocarros eram incríveis: adoravam pregar partidas às pessoas, fosse perseguir ciclistas à saída das ciclovias (nos curtos espaços em que éramos obrigados a circular junto com os outros veículos) passar por cima das poças e encharcar quem estava à espera ou fingir que paravam, virem estudantes a correr para o autocarro e eles arrancarem inesperadamente (com todos os passageiros lá dentro a rir da brincadeira). Uma coisa que gostei neles foi serem um povo tão brincalhão e bem disposto, capaz de cantar na rua. Muitas vezes me faziam parar para perguntar como arranjava o meu cabelo ou onde tinha comprado os sapatos, o que não acontece cá. Quanto a regras, tinham o hábito irritante de responder " There´s nothing I can do about it".Ficava danada! Mas em geral, gosto muito deles.

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  11. Finalmente alguém que me entende na coisa de nao se desviarem. Eu nunca levei tanto encontrao na vida como cá, juro!

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  12. Juanna, sim, é mais ou menos por aí, mas com um twist. Por exemplo, embora as drogas leves sejam legais (por enquanto, a cena está a mudar e vao ser necessárias licenças para poder comprar, a verdade é que o seu uso é visto com maus olhos. Ou seja, fosse eu consumidora e o dissesse no trabalho, por exemplo, apesar de estar a fazer algo perfeitamente legal, seria muito mal vista e muito criticada por isso.

    No outro dia, a hora de almoço, discutiamos drogas, o seu efeito e consumo - eu por exemplo referia a heroina, que foi um flagelo nos anos 80/90, e que me parecia estar em declínio - etc, e de repente uma colega minha, protótipo da holandesa típica hiper-judgemental sai-se com qualquer coisa como "eu não sei dessas coisas porque nunca experimentei, nem me interessam", meio em tom de crítica, como se nós, que sabíamos de cada droga e seus efeitos, fossemos uma cambada de drogados. Passei-me, e acabei por lhe responder que então lhe faltava cultura geral, que não precisava de ter experimentado heroina para ter ideia do que era, e que desde os 14 anos, quando li os filhos da droga, como quase todo o adolescente letrado na altura, tinha ficado com uma boa ideia sobre o assunto. Nem é a ignorancia que me chateia, mas o sentimento de superioridade com que dizem certas coisas, julgando antes de perguntar, quase sempre em tom de crítica.

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  13. Ah, venho só aqui acrescentar que os holandeses têm graves problemas em perceber o conceito de fila ou ordem de chegada nas paragens dos autocarros: eles podem ser os últimos a chegar mas têm se ser os primeiros a entrar! Dá-me cá uma raiva! Quando chega o autocarro parece que o pessoal fica louco...

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  14. Suponho que a tua colega não fala do sol porque nunca lá esteve. Ou da Bolívia porque não conhece. Ou da pobreza porque nunca a viveu. Ou do rei da Holanda porque nunca lhes apertou a mão. Oh céus, não há saco para gente assim.

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  15. A tua história (como sempre) é fantática.
    Não obstante as dificuldades resultantes das diferenças culturais considero que as mesmas nos permitem (caso queiramos) tornarmo-nos mais tolerantes e perceber que há "certezas" contrárias às nossas.

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  16. As velhotas são tramadas em todo o lado!
    Cá, já temos prioridade nas rotundas! :)
    Fartei-me de rir ao ler este texto :P

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  17. olá, deixa-me juntar mais uma peça ao puzzle. quantas palavras de holandês conheces?

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  18. sim, falam inglês, é verdade.

    até quando alguém está a tentar aprender (não é o meu caso), mas não têm paciência para falar devagar e por isso preferem falar inglês.

    não sei até que ponto se pode pode considerar o conhecimento de uma lingua estrangeira pela maior parte da população, que tal como os dinamarqueses, suecos, noruegueses em geral é bastante educada, com tolerância. especialmente quando são sede de várias multinacionais e organizações internacionais, tendo uma enorme comunidade de expats que produz riqueza para o país.

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  19. então é tão fácil dissertar sobre uma população inteira quando não se compreende a sua língua, não é?

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  20. mas o que é que o cu tem a ver com as calças?

    o que é que eu falar ou não a língua têm a ver com a forma como as pessoas se comportam comigo na rua, no supermercado, etc, onde não fazem puto ideia se falo ou não a língua, como as que por acaso descrevi? eu não costumo andar com um aviso na testa.

    estou a dissertar sobre a minha experiência pessoal a viver neste país há quase 4 anos, e a manifestar a minha opinião relativamente às características que considero dominantes nos holandeses enquanto povo.

    claro que estou a generalizar, como aliás já disse 4567 vezes aqui neste blog, estou sempre a falar na média mais ou menos um desvio padrão, porque cada vez que faço uma afirmação não posso estar a considerar todas as excepções individuais existentes e acrescentá-las em rodapé.

    e sim, acho que quase 4 anos me dão alguma autoridade para descrever algumas caracteristicas e comportamentos típicos, sabendo mais ou menos palavras em holandês.

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  21. É tão fácil dissertar sobre uma Luna inteira quando não se entende o que ela diz...

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  22. Chegada de um simpósio em amsterdão, venho dar mais um grande exemplo da imensa tolerância holandesa, para cuja compreensão falar a língua é absolutamente essencial:

    nestes simpósios, onde uma boa parte da ferquência é estrangeira, o almoço está incluído. ora, já nem vou falar do facto de o almoço consistir em sandes de queijo ou de fiambre, mas quando vou buscar algo para beber deparo com duas únicas opções:

    leite ou karnemelk (acho que em português é leitelho)!

    ou seja, mais uma manifestação de consideração e respeito por não holandeses, que não só podem não gostar de leite, ou apenas nao gostar de o beber às refeições. garrafas/jarros de água? para quê? melhor, para quem? não gosta de leitinho? fica a seco.

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  23. :)
    Vá lá, posso dizer que tive sorte. Nesta última semana em que lá estive, numa training school, não só tive direito a sandes de rosbife e salmão fumado, uma e outra ou com rúcula ou alface, como deixaram de servir leite logo no primeiro dia (havia sumo de laranja natural e água)

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  24. o mal nao e servirem leite, e servirem so leite.

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  25. POrtanto posso dizer que me serviram um banquete ;)

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  26. Epá depois de ler este post (e comentários) de quem tenho a certeza ter mais do q conhecimento na matéria, 4 anos é tempo suficiente, fiquei na dúvida se terei mm estado em Amesterdão hehe.

    Por acaso n tive mtas peripécias no trânsito, e cheguei a alugar uma bicla e a encetar alguns episódios caricatos mas ninguém desatinou cmg.

    E por acaso tb n fiquei com a sensação de serem obcecados com regras (embora essa fosse a ideia q tinha deles).
    Acho q tive sorte...

    Mas fiquei mto fã da cidade. Acho q é das mais giras em q já estive. Gostei mm.
    Mas acredito q numa passagem breve de 4 dias enquanto turista a realidade seja mto diferente.

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  27. Amsterdao nao e a holanda, de todo. as pessoas tendem a confundir amsterdao com holanda, que e tao errado como confundir londres com inglaterra.

    eu vivo numa cidade pequena, da holanda real (e ainda assim muito internacional). e diferente.

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  28. Amsterdão é Disneylândia.
    O resto sim é Holanda.

    (Palavra dos holandeses com quem já trabalhei...)

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  29. :) Ah pronto assim já fico mais elucidada.

    Sim, de facto em mtos casos n podemos julgar um País por uma única cidade.

    Já tinha essa ideia da Alemanha, onde só conheço Berlim, e q todos os conhecedores do País me disseram ser uma cidade "à parte" do resto.

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