24 de janeiro de 2005

O amor irrita


Porque será que, quando se apaixonam, os jovens casais parecem sofrer uma grave regressão neurológica aos tempos de infância, passando em segundos, de uma idade mental de vintes e tais para os cinco ou seis anos?

As vítimas desta espécie de trombose fulminante revelam sintomas facilmente detectáveis, como um ar apalermado e um flagrante défice de perspicácia, passeando-se com olhar vago de quem não pertence a este mundo, ou se pertence, no mínimo, não o entende.

Começam a gostar daqueles jogos estúpidos, brincadeirinhas infantis, bilhetinhos escritos às escondidas como se fazia na primária e até ursinhos de peluche. Por favor, quem é que tem paciência para um marmanjo de 90 quilos e quase 30 anos com ar embevecido a olhar o ursinho-com-coração-de-cetim-a-dizer-I-love-you que comprou na loja do chinês para a sua mais que tudo? Já não temos idade para esse romantismo kitsch de coraçõezinhos cor-de-rosa nem diminutivos carinhosos alusivos a animais felpudos com uma grossa camada adiposa, tipo ursinhos, coelhinhos, gatinhos e outros tantos acabados em inhos. Pessoalmente, tanto pêlo, a mim, faz-me espirrar.


E não raras vezes somos agredidos auditivamente com conversas telefónicas enjoativas entre namorados que falam à bebé. Isto para mim supera tudo, uma louraça número-38-copa-C, com ar de vamp, a falar “ashim”, entre os risinhos, as palavrinhas mal ditas, nhanhanhi-nhanhanhá… dá vontade de perguntar: “Não aprendeu a falar em pequena ou tem alguma deficiência? Olhe, uma amiga minha tem um filho de 4 anos com problemas de desenvolvimento e dificuldades de expressão, que tem evoluído imenso com a terapia da fala. Se quiser experimentar, posso arranjar-lhe o número de uma óptima profissional.” Por mais que tente, não consigo entender porque é que imitar os nossos sobrinhos de 3 anos pode ser considerado sexy. Será que não perceberam que os bebés só falam assim porque ainda não aprenderam a falar como deve ser?

Toda esta felicidade côr-de-rosa às estrelinhas e corações, de olhares melosos e mãos agrafadas, e de palavras delico-doces sussurradas ao ouvido, irrita-me, deixa-me à beira de um ataque de nervos, ao mesmo tempo que, detesto admitir, me provoca uma certa dôr de cotovelo… Porque, no fundo, todos alimentamos a fantasia de flutuar entre as nuvens, sonhar acordado, viver eternamente apaixonado numa felicidade ilimitada, cantando e dançando como nos musicais… E porque os mais realistas, enquanto voltam a assentar os pés na terra firme, sabem que esse mundo não existe e que, para ouvir música, tem de se ligar o rádio.


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