25 de setembro de 2009

O remorso


Em The Reader, a iliteracia de Hanna Schmitz seria completamente irrelevante para o conflito moral que constitui o pilar central da história, se não servisse principalmente três propósitos: enriquecer o enredo, tornando-o mais dramático; ser a causa para um dilema cuja resolução irá alimentar o remorso de Michael; e servir como catalisador para a nossa compaixão e suscitar a nossa empatia, funcionando como manobra de diversão relativamente aos crimes cometidos. O analfabetismo de Hanna não é a razão pela qual está sentada no banco dos réus, nem é desculpa para os crimes de que é acusada. Não saber ler em nada lhe restringe a capacidade de discernimento ou a impede de distinguir bem do mal, pelo que se torna, para o caso, irrelevante. Ela é, de facto, culpada da monstruosidade de que é acusada. Ela, juntamente com outras mulheres, tomou a decisão que levou à morte de centenas de outras. O conflito interior que enfrentamos não é o de saber se é ou não culpada, mas se à luz das circunstâncias teríamos feito diferente, enquanto somos confrontados com o facto de nem sempre serem monstros, mas pessoas comuns, por vezes até com boas intençoes, capazes de cometer tais atrocidades. E é este dilema a que assistimos, através dos olhos de Michael, que não consegue decidir o que sentir em relação àquela pessoa, porque lhe conhece os dois lados, o bom e o mau, sendo-lhe impossível decidir se amá-la ou desprezá-la. A isto acresce a injustiça a que assistimos, impotentes, sabendo que não poderá ter sido ela a escrever o documento que a incrimina, enquanto a vemos assumir a culpa sozinha, usada como bode expiatório. E a recusa em defender-se, para proteger um segredo que a humilha, enche-nos de compaixão, mesmo sabendo que não o faz por se saber culpada, mas por orgulho. A verdade é que Hanna sente mais vergonha por não saber ler do que por ter levado à morte centenas de mulheres. E se há nisto uma certa amoralidade, ao mesmo tempo é tão humano que nos cria empatia, por nos reconhecermos na vontade de preservar alguma dignidade, mesmo quando já não resta quase nenhuma. E por fim temos Michael, o único detentor do segredo, o único que a poderia ajudar, revelando-o, mas que escolhe não o fazer e guardar também ele, para sempre, um segredo. E esta escolha é, mais uma vez, ambígua. Escolhe calar-se e condená-la a 20 anos de prisão para proteger o seu segredo respeitando a sua vontade; porque os seus actos o repugnam e acha que merece castigo; ou por cobardia e vergonha em assumir que a conhece, decidindo defendê-la perante os seus pares? Creio ser um misto de todas, embora prevaleça esta última, enchendo-o de uma culpa que o condena à solidão e o leva a enviar cassetes religiosamente, cumprindo também ele uma pena. Não é amor, não é bondade, não é compaixão que o move, mas remorso. E talvez alguma esperança de redenção.

*A fórmula da recusa de dafesa para proteger um segredo foi também usada, de forma a manipular os nossos sentimentos de forma violentíssima, no Dancer in the dark, criando um sentimento de empatia muito semelhante.

10 comentários:

  1. Muito bem escrito.
    Não percebo por que é que o filme foi tão mal recebido por alguns.

    ResponderEliminar
  2. Excelente crítica, a qual revela uma faceta tua que desconhecia, a de cinéfila.
    Não vi o filme nem li ainda o livro, mas como o teu texto me despertou curiosidade, tenciono colmatar essa lacuna o mais breve possível.

    ResponderEliminar
  3. Pegando (mais ou menos) no que disseste há dias sobre um livro - quando estes filmes muito aclamados pelas elites intelectuais do sector saem eu não consigo deixar de pensar que pessoas não muito dadas ao cinefilismo (como eu, que nada percebo de cinema) não consigam ver / perceber / apreciar o filme. O Dancer in the Dark, por ex., detestei.

    ResponderEliminar
  4. Que bom texto. Devias fazer crítica de cinema.

    ResponderEliminar
  5. Luna, eu, que tenho sempre tanto receio em aqui comentar, hoje não posso deixar de o fazer.
    Li o livro e foi com alguma curiosidade que, mais tarde, vi o filme. O livro chamou-me a atenção exactamente pelo expiar de dor de uma nação. Uma história bem contada e que nos deixa com tanto em que pensar e questionar. E que tu tão bem analisaste.

    Tive mais dificuldade com a história de Dancer in the dark mas sim, o sentimento de empatia é semelhante. Recordo-me ainda de uma sensação de impotência.

    ResponderEliminar
  6. isto tem de ser o maior spoiler que já li. felizmente para mim, já vi o filme.

    ResponderEliminar
  7. um dia hei-de saber escrever assim, ou não, talvez um não se avizinhe da realidade com maior rigor. muito bem minha querida. muito muito bem.

    ResponderEliminar
  8. gostei mutíssimo do teu blog, escreves muito bem e concordei em 200% com a tua opinião sobre a educação em Portugal. Realmente é um problema que diz respeito a todos. só queria que houvesse mais gente a pensar assim tão positivamente, ainda que apontes o que falha.

    ResponderEliminar
  9. Reparaste que a iliteracia da Hanna Schmitz não era de supor dada a sua profissão?
    Dificilmente uma revisora dos electricos pode não saber ler...
    A iliteracia da personagem entra um pouco "á martelada". Mas estou de acordo que enriquece a história tornando-a muito mais terna e comovente.

    Na minha opinião a Hanna Schmitz não está nada arrependida das acções de que é acusada (o que é comum nas situações reais identicas á que é retratada).

    É um grande filme!

    ResponderEliminar