Na minha sociedade ideal não existe o aborto, simplesmente porque não é necessário, uma vez que todas as gravidezes são profundamente desejadas e todos os filhos gerados com amor, em famílias capazes de os criar sem passarem necessidades. Todas as mulheres sabem como evitar gravidezes indesejadas e têm ao seu dispor todos os meios existentes para se precaver, enquanto a informação e educação sexual é uma realidade que chega a toda a gente desde muito cedo, começando no seio familiar e estendendo-se às escolas e meios de comunicação.
Infelizmente, na sociedade real, aquela em que vivemos e com a qual precisamos de aprender a lidar, o aborto é também uma realidade. Existem muitas gravidezes indesejadas, muitas mães prematuras e sem qualquer preparação, mães sem meios de sustentar condignamente seus filhos, futuros brilhantes ameaçados por um acidente de percurso que não deveria trazer mais consequências que uma leve dor de cabeça na manhã seguinte. Motivos são milhares, opções, muito menos.
A verdade é que o aborto existe e continuará a existir, independentemente de o aceitarmos ou do nome que lhe dermos. Independentemente de concordarmos com as suas razões ou da nossa consciência pessoal. Independentemente de ser legalizado ou considerado crime, continuará a ser feito em condições miseráveis de higiene e assepsia, por carniceiros não qualificados, com técnicas obsoletas e que põe em perigo a vida de quem a ele se sujeita.
Continuarão a morrer mulheres esvaindo-se em sangue por entre as pernas, depois de lhes terem desfeito as entranhas sem perceber o que é que correu mal, com úteros perfurados e hemorragias internas, com sacos de pus a envenenarem-nas aos poucos até a infecção ser generalizada e não haver nada a fazer.
Independentemente dos movimentos pró-vida e leis de Deus, que só servem à Constança de família tradicional e que vai à missa ao Domingo, prestes a entrar para direito na Católica e destinada a casar de véu e grinalda em branco imaculado com um rapaz de família, e que o malandro do Bernardo quase desgraçou, coitadinha, não fosse a bendita viagem a Espanha a pretexto de umas comprinhas no El Corte Inglés, completamente diferente do de cá, que há sempre casos excepcionais e a Constancinha não merece ver o seu destino manchado, que não é como essas vadias que andam por aí a fornicar a torto e a direito e que depois de lhe tomarem o gosto nem querem mais nada, é abortos todos os dias.
A diferença entre umas e outras é a lei proteger apenas quem tem dinheirinho suficiente para passar a fronteira e se instalar comodamente numa clínica especializada sem correr quaisquer perigos. Quanto às outras, podem sempre ser surpreendidas com um 2 em 1 e além do bebé morrer também a mãe. Também são pobres desgraçadas, quem se preocupa? Falta aos defensores da hipocrisia actual entender que a liberalização não implica generalização, que ninguém é obrigado a fazer abortos se não quiser, apenas dá a hipótese a quem toma essa decisão de fazer em segurança o que o faria de qualquer modo, fosse ou não legal.
Excelente texto. Concordo com tudo.
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