4 de novembro de 2014

Eu explico



Uma das grandes confusões generalizadas acerca da questão do "piropo" passa pela dificuldade em distinguir cortesia de assédio. De como uma simples e inocente interacção pode ser compreendida de um modo ou outro, de como um simples "bom dia" pode ser tanto uma coisa ou outra dependendo da forma como é dito. A distinção é simples, e mesmo sem a racionalizarmos, sabemos reconhecê-la. E ela está entre falar com alguém ou falar para alguém. 
Falar com alguém implica uma intenção de comunicação de igual para igual, de olhos nos olhos, com o outro. Alguém que numa paragem de autocarro ou consultório de dentista nos olhe e se nos dirija dizendo "olá" ou "bom dia", é completamente diferente de nos arremessarem as mesmas palavras gritando enquanto passamos na rua já de costas voltadas, onde não estão a falar connosco, estão a falar para nós sem pretender estabelecer comunicação, com o tom de ambas completamente distinto. Num caso vê-se o outro como alguém com quem nos podemos relacionar civilizadamente enquanto pessoas, no outro há objectivização e desrespeito pela vontade própria e individualidade, porque não se lhe dá escolha. E é nesta subtileza que reside toda a diferença.


*Post editado: cartoon enviado por uma leitora atenta.

31 comentários:

  1. E aí algures no meio entre esses dois campos, está o tal do piropo a sério.

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  2. Tenho acompanhado esta "discussão" caladinha, que sei bem que nunca iremos concordar, neste assunto em particular, apesar de concordarmos que o assédio é ofensivo, errado e pode ser intimidativo, nalguns casos.
    Mas só a ver se percebo, sem ponta de ironia, é uma dúvida que me fica do post. Qual é a conclusão? Criminalizar ou tornar susceptível de contra-ordenação um "olá beleza" se uma pessoa já estiver de costas voltadas? Não lhe parece excessivo e. muito mais importante, impraticável?

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    1. Da última vez que tentei discutir este assunto consigo, fui enxovalhada no seu blog, acusada de desonestidade intelectual em inúmeros posts, e ainda destratada e gozada nos blogs das suas amigas, pelo que nunca mais voltarei a cometer esse erro.

      Remeto-a para os comentários que já deixei em resposta ao Pipoco, relativamente a pergunta semelhante:

      http://horas-perdidas.blogspot.pt/2014/11/o-problema-dos-homens.html?showComment=1415034856645#c1708374816561068865

      Quanto a criminalizar ou tornar susceptível de contra-ordenação, tal como em outros crimes que dependam de queixa, é às instâncias judiciais q caberá fazer a destrinça e determinar se a queixa é ou não legítima. Não acredito que alguém resolva fazer queixa de um "olá beleza" - afinal se nem de violações muitas vezes fazem - mas a possibilidade de punição pode ser de facto um elemento dissuasor do assédio e ajudar a mudar atitudes aos poucos. Assim tipo as multas por álcool.

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    2. E já agora, um "olá beleza" pode ser absolutamente nojento se acompanhado de um olhar lascivo de alto a baixo, enquanto se agarra os tomates. As pessoas sabem distinguir, tanto quem ouve, como quem faz.

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    3. Eu nunca a enxovalhei Luna. É verdade que não retirei aquilo e expliquei o porquê. Mas sempre falei consigo da mesma maneira que estou a falar agora, com educação, ou a Luna não me responderia e com toda a razão.
      Mas adiante, já percebi apesar de ter uma opinião diferente. Eu não acho um "olá beleza" intrusivo, ainda que esteja de costas mas acima, de tudo acho inútil a contra-ordenação que depende de um tom de voz ou de uma pessoa ser olhada nos olhos. A Luna há-de reconhecer que é impraticável, nem a Luna apresentaria queixa.
      Já aos comia-te toda e boquinha de não sei o quê, talvez não fosse mal pensada a contra-ordenação. Talvez a Luna tenha razão e possa ser algo dissuasor, apesar de eu achar que passa por uma questão de educação, tem de partir das famílias, os pais porem os filhos a lavar louça, tal como põem as filhas, ensiná-los que devem tratar as mulheres com respeito, preocuparem-se se são play boys (como se preocupariam com uma filha), enfim... ensiná-los a respeitar as mulheres e a desprezar quem faz o contrário, do mesmo modo que desprezam quem escarra no chão. Acho mesmo que é uma questão de civismo e educação. muito mais que uma questão penal e que uma sociedade educada o será a todos os níveis, assédio incluído.

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    4. Obviamente parte essencialmente da educação, como em geral a boa educação e maneiras, ou atitudes relativamente a racismo, xenofobia, homofobia, etc. E no entanto, em todos estes casos a lei teve um papel fundamental ao reprimir comportamentos que antes eram considerados aceitáveis, e foi pioneira na mudança de atitude e mentalidade enquanto sociedade.

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    5. (E repare que eu ponho de lado o galanteio ou piropo educado, propositadamente. Eu gosto de um cumprimento e não dou o direito a nenhuma mulher de afirmar que um homem não se me pode dirigir, ainda que não me conheça, para me galantear, só porque essa mulher acha isso intrusivo. Se eu não gostar, posso sempre responder. Mas eu vejo isso como um mero cumprimento, sem qualquer intenção ou expectativa associada)

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    6. Mais ou menos, Luna. Eu posso ser racista à vontade. Não há lei que me proíba de não gostar de gente de raça negra, por exemplo. Posso mão lhes dar os bons dias e recusar-,e a apertar-lhes a mão, só não posso é interferir com direitos humanos.
      E outra coisa, se as mulheres optarem por enfrentar os tipos, em vez de calar e seguir, a maior parte das vezes eles calam. Afianço-lhe que assim é.
      (claro que convém não fazer a coisa num beco escuro e deserto mas isso já é bom senso...)

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  3. Tinha quase escrito um comentário enorme pelo tlm que desapareceu. Paciência. A resposta esta no comentário que linkei: a lei nao impede que as pessoas continuem a pensar de certa forma, mas impede comportamentos e com isso muda formas de estar enquanto sociedade. Vide apartheid, por exemplo.
    Há 50 anos seria considerado normal e aceitável beber uma garrafa de whisky e a seguir pegar no carro. Foi preciso a lei para comecar a dissuadir esse comportamento. E se ainda hoje o maior motivo para nao o fazer continua a ser "poder ser apanhado", a verdade é que contribuiu para consciencializar e hoje em dia considerar a irresponsabilidade condenável aos olhos da sociedade.

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    1. E nao se deve subestimar o poder da vergonha; mesmo que nao dê em nada nem se siga com a queixa, um tipo arriscar-se a ir parar a esquadra e ter de explicar à mãe, mulher ou irmã que foi por ter dito que fazia e acontecia a uma rapariguita que passou na rua, pode ter algum efeito.

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    2. A lei e o direito podem regulamentar uma situação que já existe e já é genericamente reprovada, ou pode ser pioneira e fixar a reprovação para uma conduta que é genericamente consentida. Se um "ó preto" pode dar lugar a queixa crime, não percebo que não se entenda que um "ó beleza", ou "ó boa" não possa. Em ambos os casos há uma interpelação verbal desadequada, não provocada, não consentida, não solicitada, que assenta num sentimento socialmente reprovável, de superioridade, de poder de quem emite tais palavras. É claro que não sou suficientemente ingénua para acreditar que, só por si, a lei possa impedir certos comportamentos. Afinal, as pessoas continuam a fugir aos impostos, a cuspir e deitar lixo no chão, a roubar, a matar. Mas haver uma lei que o reprova manifesta que a sociedade não compactua com tais comportamentos, os considera inadequados, e que merecem censura jurídica. Só isso é um empowerment essencial.

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    3. Mas a sociedade já considera esses comportamentos desadequados. Ou estou enganada? Um tipo que se dirija a uma miúda de treze anos e lhe diga que fazia e que acontecia, sabe perfeitamente que está a ser totalmente desadequado, não sabe? Sabe que se fizesse, seria preso por pedofilia (suponho que só o dizer coisas de cariz sexual seja crime, visto estarmos a falar de menores, mas efectivamente não estou segura do que afirmo).
      A questão é que acho que a lei seria impraticável de ser aplicada, a menos que o marmanjo se ponha a dizer obscenidades à frente da polícia. Será sempre a palavra dele contra a minha. Não me parece que se conseguisse alguma coisa, para além de entupir tribunais e esquadras com queixas que seriam, necessariamente arquivadas.
      E quanto a tornar susceptível de contra-ordenação um "ó gira", não concordo, não vem daí mal nenhum ao mundo. Daí a aparecer gente a dizer que um desconhecido só nos pode interpelar para pedir uma informação, vai um pequeno passo. Soa-me a fundamentalismo,

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    4. Também foi muito difícil apanhar e condenar o Green River Killer, e nem por isso se deixou de tentar. Nem se descriminalizou o homicídio. E nem sequer havia a palavra das vítimas.
      Já agora, também é muito difícil apanhar e condenar um violador, que apesar do adn eles também vêem o csi e usam preservativo. Fica-se muitas vezes só com a palavra da vítima: o que fazer, o que fazer.
      A maioria das leis é muito difícil de aplicar. E isso não é razão para deixarem de existir.

      Quanto ao fundamentalismo, a sua opinião também me parece pecar do mesmo, mas em sentido contrário.

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    5. Está certo, Izzie. Agradeço-lhe a delicadeza da resposta. E a clareza de ideias também, que isto de comparar assassínios e violações aos "ó gira" desta vida, arruína qualquer tentativa de diálogo e tentativa de perceber pontos de vista diferentes.
      Obrigada pelo seu tempo.

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    6. Aquela dúvida tão legítima do "ai será que agora não posso segurar numa porta ou dizer bom dia no café" - e acho que já expliquei a distinção neste post, e as pessoas sabem bem a diferença - deixo um bom comentário que encontrei no Jugular e que é bastante elucidativo:

      "E, para quem tem medo até de segurar uma porta, talvez uma forma prática e eficiente seja perguntar a si mesmo se diria ou faria o mesmo se a mulher em questão fosse acompanhada por um homem. Se concluir que o homem não gostaria do seu comentário ou gesto relativamente ao aspecto físico da pessoa que o acompanha na rua, é bastante provável que a pessoa cujo aspecto físico está a ser comentado também não o aprecie."

      http://jugular.blogs.sapo.pt/nao-nao-e-isabel-mas-quanto-ao-que-e-3818413#comentarios

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    7. É o princípio contido no exemplo, e não o exemplo em si que vale. Se quer que troque por miúdos, ou por outros exemplos mais comezinhos, deitar lixo no chão é contra-ordenação. Idem para cuspir ou não apanhar o cocó do cão. As contra-ordenações são ilícitos de mera ordenação social, portanto de um "nível" inferior a condutas criminalizadas. Trata-se de punir condutas que se considera atentarem contra os mais elementares princípios de convivência social, e que se considera não terem dignidade penal. Ora um piropo, mais ou menos ordinário, neste momento, e no que à legislação portuguesa concerne, está abaixo de caca de cão no passeio. E sim, também é muito difícil apanhar o dono do cão, e depois?

      [Se quer argumentar, argumente, que ao menos faz ouvir/ler a sua opinião; a opção de mandar bocas, satirizar o argumento do outro, ou simplesmente enveredar pelo argumentário ad hominem é uma forma de estar na discussão que diz mais sobre o arguente que sobre o tópico. E não acrescenta nada à discussão. Por isso, e como a Luna já lhe disse, aliás muito delicadamente, supra, não vou nivelar a minha contribuição para a discussão por aí, que já vimos o resultado que deu noutras ocasiões.]

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    8. E já agora o citado post no Jugular

      http://jugular.blogs.sapo.pt/nao-nao-e-isabel-mas-quanto-ao-que-e-3818413

      "Não, não é tudo assédio.
      E’ assédio um comportamento que, ostensivamente, se dirige a uma pessoa transmitindo-lhe a ideia que ela não é considerada como tal, mas como objecto, ou pelo menos como um ser que não pertence à mesma espécie do que o seu interlocutor e que, como tal, pode muito bem aguentar com os caprichos e as vontades deste ultimo, ainda que não lhe apeteça atura-lo.

      Como é obvio, a caracterização dependera sempre do contexto. Entre outras coisas, a consciência de que o comportamento não é desejado pela vitima, ou a indiferença manifesta a esta questão, sera um indicio importante. Não vi o filme, mas posso imaginar que muitas interpelações de rua, ainda que não usem palavrões ou alusões explicitas, mereçam a qualificação de assédio e que devam ser distinguidas de comportamentos anodinos e inofensivos como “por favor, minha Senhora, sabe indicar-me onde fica a praça do Chile”.

      Portanto não é muito complicado fazer a diferença.
      Mas, como sempre, ha burgessos interessados em misturar tudo. Estes ultimos, que normalmente nunca dedicaram dois segundos a tentar saber do que estão a falar, são normalmente os primeiros a vir com queixumes do tipo : “isto agora, uma pessoa não pode fazer perguntas inocentes nem dar os bons dias na rua, é o totalitarismo do politicamente correcto”.
      E, ao que parece, nos temos que os aturar.'"

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    9. Luna, isso é o fim do galanteio. Se uma mulher estiver acompanhada por um homem, ninguém a irá galantear. Ou meter conversa. da mesma maneira que uma rapariga não mete conversa com um rapaz acompanhado. E com isso eu não concordo, de todo.

      O que eu tentava, dizer, sem ponta de ironia, é que acho que haver uma lei que condene comentários obscenos (e só esses), não resolve o problema. Até a podem fazer, não se perde nada, mas não me parece que mude o que quer que seja. Parece-me que o caminho tem de ser por outro lado (e não tenho solução, já agora, a não ser a consciencialização e educação, mas nós sabemos que gente mal educada é o que há mais por aí)...

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    10. Picante, acho que explico bem no post e nos comentários subjacentes que é diferente meter conversa com alguém e largar um dichote a alguém. No primeiro pretende-se interacção entre iguais, no segundo caso não.
      Quanto ao "galanteio", quando ele é de facto educado e bem intencionado, supõe que haja interacção e receptividade da outra pessoa - e muitas vezes pode ser feito à frente de toda a gente, inclusivé do marido. Apreciações ou manifestação de intenções de cariz sexual ou comentários sobre o físico, para mim não cabem em interacções sociais entre desconhecidos, é uma tremenda falta de respeito e de educação.

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    11. Acho que nós concordamos que é fácil distinguir, assédio verbal (ofensivo e de cariz sexual) de galanteio. Avancemos.
      O meu comentário, prendia-se com a sua observação de que o galanteio pressupõe interacção e receptividade e que pode ser feito à frente do marido. É com isso que eu não concordo. Se for a passar na rua e alguém disse "olha que linda mulher", quando muito poderei não conseguir conter um sorriso, mas o mais provável é seguir em frente, sem dar troco. E é um galanteio, não é assédio, ainda que eu já esteja de costas. E também duvido que alguém diga isso à frente de um marido, não por ser ordinário ou maldoso, que não é, mas por poder arranjar problemas. Era a isso que me referia ao dizer que esse critério seria o fim do galanteio.
      (e estou a deixar de fora os "ó gira" desta vida, não chegam a ser galanteios mas também não são ofensivos a menos que acompanhados de gestos ou olhares lascivos...)

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    12. E, fazendo o papel de advogado do diabo, por vezes um olhar é muito mais ofensivo que uma palavra. Digo-lhe isto com a consciência de que há uns anos, em Marrocos, olharam para mim de uma maneira tão nojenta e lasciva que quase me senti violada. Foi um olhar que me ofendeu e me fez ficar furibunda, A minha vontade foi desfazer o homem ao pontapé (e estava de saia comprida e t-shirt masculina XXL). Criminalizamos olhares?
      É complicado, Luna. Não me parece que a criminalização resolva o que quer que seja, acho que a solução passa mesmo por consciencialização, juntando os homens, em vez de os afastar. A Luna tem razão quando, por vezes, diz que eles não percebem. É verdade, às vezes não percebem mesmo, é raro eles sentirem-no na pele. Mas para que percebam parece-me mais produtivo uni-los em torno do problema que proibir uma série de abordagens abruptamente.

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    1. Agradeço a contribuição assertiva para a temática debatida.

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  5. Nada que agradecer. Assim e deste modo, a temática fica mais e melhor legível. Correcto?

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    1. Também o ficaria se me tivesse corrigido em privado.

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  6. É pá, Luna achas que me lembrei de o fazer?
    Nem reparei que tinhas ali o endereço de email.
    E pensava que tinhas os comentários moderados.

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    1. Muito bem, achei o tom seco e despropositado, terei interpretado mal.

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    2. E já agora, tive a dúvida ao escrever, mas estava com pressa e não deu para ir confirmar ao ciberdúvidas, acontece.

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  7. Como distinguir assedio de bo educacao
    "Aquela pessoa diria aquilo à sua maezinha ou a outra pessoa do mesmo sexo desconhecida?"
    Se sim é educacao
    Se nao é assedio

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  8. Ja agora quanto ao criminalizar apoio totalmente, pode ninguem ser preso por isso mas a meu ver é daquelas cenas do genero "its about sending a message" é acerca de mostrar que nao estamos dispostas a tolerar desrespeitos desnecessarios. Tanto homem que diz "mas ha mulheres q gostam" e olha bela merda, ha mulheres que gostam de chuva dourada e nem por isso eles andam a mijar em cima de todas

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